sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Do Tempo que Urge

 




Afogados em logísticas diárias corremos para o tempo sem tempo.

Enchemos agendas digitais de compromissos intermináveis e fingimos que vivemos. A métrica dos dias faz-se pela produtividade da agenda. E de repente o ano encolhe-se em semanas e dentro das semanas evaporam-se os dias.

Comprometidos com o relógio que engole as horas numa fúria insaciável, assinalamos as tarefas completas e reagendamos as que ficaram para trás na esperança de enganar o próprio tempo. Ansiosos avançamos, corremos, lutamos para chegar ao fim do dia e ao deitar a cabeça na almofada podermos libertarmo-nos da ansiedade e dizer: consegui! Hoje fiz tudo o que tinha agendado. A seguir fechamos os olhos e tentamos adormecer rápido antes que a ansiedade do que temos planeado para o dia seguinte nos invada.

E assim continuamos, na ilusão de uma vida cheia.

Mas quando a agenda esvazia, já não sabemos quem somos. Se somos alma da gente ou gente sem alma. E seguimos viagem sem pensar muito nisso. Seguimos a nossa vida instantânea, prêt-a-porter, self-service, ready to go, fast and furious….

Autómatos inconscientes seguimos pelo mundo sem olhar, sem ver, sem sentir, incomodados pela chatice dos que ainda se manifestam pelas causas perdidas que fazem parar o transito e atrasam os compromissos que com tanto cuidado planeamos.

Seguimos anestesiados. Tomamos analgésicos e antidepressivos.  Dizia o poeta que pelo sonho é que vamos, talvez…mas vamos como sonâmbulos, vamos com pressa. Dormimos por impossibilidade de não o fazer, comemos a mais ou a menos, comemos sem regra ou all included...ou comemos, dormimos e exercitamo-nos com tantas regras que as réstias do prazer do excesso são aniquiladas no pensamento.

Fez-se tarde. Vou dormir. O dia que hoje passou foi já riscado da agenda e desta breve vida. Amanhã fingiremos todos estar vivos de novo.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Verão

 


Não fui feita para dias velozes nem para rotinas permanentes.

Sou mais feliz na contemplação em silêncio ou na observação do burburinho. Mas a realidade do sustento da vida não se compadece destas fragilidades da alma.

Podemos chamar-lhe coragem ou medo da rendição, escolham vocês. O movimento combate a ansiedade e o tédio das rotinas. Não me lembro quando começou esta pulsão da persistência, do culto da persistência…esta pressão ora extrínseca ora intrínseca para persistir e insistir. Eu própria rezo ao Universo das escolhas que se querem conscientes e persistentes.

Tendemos a subestimar o acaso e o aleatório, talvez na negação do maior e inevitável de todos os acasos, que chegará um dia sem aviso - a nossa própria morte.

Achamos do alto da nossa arrogância humana que se tivermos sempre tudo planeado «fintamos» o azar e todos os acontecimentos aleatórios indesejáveis que por aí andem à espreita, como se porventura as melhores coisas da vida não nascessem, também elas, de felizes acasos. E assim seguimos, com as nossas agendas onde raramente vem marcado dia e hora para deixar fluir o acaso- Nem morte nem amor.

Resta apenas uma existência arrastada: existir para que outros existam também, na esperança de que alguns de nós realizem um qualquer propósito por aparente acaso divino não agendado.

Talvez neste sol de agosto consigamos libertar amarras e deixar, nem que seja apenas por breves instantes, a vida empurrar-nos. Brindemos a isso.



 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Viajar é preciso

 

O melhor das viagens é a memória que guardamos delas.

Pode ser uma imagem, um ambiente, uma pessoa, um cheiro ou até mesmo um som. Quantas vezes ao escutarmos uma música que disfrutámos num momento especial de certa viagem acende a memória de forma instantânea, transportando-nos para esse tempo vivido e trazendo aos sentidos toda a intensidade desse momento passado.

Também há viagens que acontecem dentro da nossa cabeça. Uma viagem imaginada pode ser muito poderosa. Não tem tempo nem espaço. Existe noutra dimensão. A dimensão do sonho. Se o sonho comanda a vida, as viagens sonhadas podem levar-nos onde quisermos quando quisermos. Livre da materialidade, sem limites.

Hoje escolho viajar de olhos fechados. Amanhã, quem sabe, talvez partilhe por aqui essa demanda que ainda não sei onde começa ou acaba. Vou ainda escolher se vai ser épica ou apenas tranquila. Venturosa ou apenas morna, como uma maré de Verão no mediterrâneo com o horizonte lá ao fundo a perder de vista.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A minha crise cinematográfica, ou a vã glória de Hollywood

 




Gostar de cinema é algo que não se escolhe quando se passou pelo século XX. Todos os géneros, todas as cores, todos os efeitos especiais desta vida nasceram no século XX. A televisão foi aos poucos engolindo o cinema e atualmente ir ao cinema é um ritual anual ou semestral para a maioria dos comuns mortais. Os canais de streaming tornaram-se os donos disto tudo e as televisões transformaram-se em aparelhos de alta-definição com dimensões bastantes consideráveis. Mas o pior é que as gerações mais jovens já não querem saber desses detalhes, pois fica tudo reduzido à dimensão do ecrã do telemóvel. A privacidade do visionamento sobrepôs-se à qualidade do mesmo.
Mas não era bem disto que eu queria falar quando iniciei esta postagem. Na verdade, eu queria mesmo confessar a minha ascensão e queda no mundo da cinofilia.
O primeiro filme que vi na vida no cinema foi em sueco e chamava-se  Pippi Långstrump ou Pipi das meias altas, se preferirem. Não percebi patavina, até porque não sabia ler ainda. Depois vieram as animações Walt Disney com a Bela Adormecida e o Pinóquio. Mais tarde a Guerra das Estrelas, Flash Gordon, Choque de Titãs, Indiana Jones, e nunca mais parou. Na televisão assistia a séries como Raízes e Holocausto - nenhuma delas adequada à minha idade – talvez por isso demasiado marcantes a ponto de provocarem em mim um imenso sentido de injustiça e revolta que perdurou desde aí. Depois vieram os filmes antigos western, o Fred Astaire no fantástico Cinderela em Paris, e as séries policiais da Ms Marple ou do Sherlock Holmes…
Mais tarde, comecei a assistir a cinema de autor fora do mainstream. Fellini, Pasolini, Godart, Oliveira, Ingmar Bergman, Greenaway, Moretti, Almodovar, Woody Allen, etc. Por esta altura quase me divorciei de Hollywood, tal era o choque conceptual destes filmes por comparação. Ficou o Hitchcock, o Tarentino e pouco mais.
Entretanto, com o passar do tempo e com o nascer dos filhos, fiz as pazes com os óscares, e decorrente de uma produção mais diversificada e á medida de todos os gostos lá fui retomando o ecrã mais american way. 
Agora, como a maior parte das pessoas, pouco vou ao cinema e a Netflix domina os ecrãs cá de casa. Mais em séries do que em filmes. Perdi a paciência para filmes que requeiram muito esforço intelectual dando prevalência aos que me trazem boa disposição e afastamento da realidade. Violência fujo a sete pés tirando uma ou outra tropelia da Marvel ou filmes de guerra baseados em factos verídicos. Pouca resistência tenho para dramas existenciais, lamechices ou enredos carregados de analepses e prolepses que não tenham uma boa história ou ação associada. Posto isto, sinto que emburreci, para a cinofilia. Não por incapacidade de apreciar um bom filme de autor, mas por preguiça intelectual.
Foi esse o confronto que senti hoje ao visionar o novo Avatar. Em 3D, como não poderia deixar de ser. Imaginei alguém que fosse projetado no tempo de uma sala em que assistia a um filme mudo para aquele momento em que seres imaginários vivem à nossa frente como criaturas reais. Tirando essa espetacularidade, que tem mais a ver com digitalização de efeitos especiais do que com cinema, o filme é a perfeita «xaropada». Vale a mensagem subliminar da necessidade de proteger a natureza e como toda a vida está interligada. A estória mais do que repetida vezes sem conta dos bons contra os maus em que no fim explode tudo alguém fica preso por um braço ou encurralado, mas acaba sempre por se salvar fruto da coragem avassaladora do próprio personagem ou de alguém que vai ganhando aura de herói no decorrer da estória. Foi isto. Ou seja, um tema sério é abafado por tanto explosivo e inverosimilhança.
Não sei se mais alguma vez vou sair desta cave a que desci, mas reconheço que tenho feito más escolhas. «May the Force be with you».

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Bola Colorida

 


Naquele tempo Rosália tinha o hábito de fechar os olhos com força durante vários minutos (nem sabia bem quantos, pois o tempo variava consoante o grau de tédio). Fechava os olhos com força para ver melhor para dentro.

Via muitas coisas quando fechava os olhos assim. Rosália tinha a certeza que via o Universo. Se fosse dia, começava com uma mancha laranja que se expandia. Se fosse noite, espirais de cor que perseguia sem saber onde acabavam. Só podia ser o Universo.

Nos momentos de escuridão surgia sempre aquela pergunta sem resposta: o que é o nada? Qual o pano de fundo da não existência? O breu do espaço? Rosália hesitava. Mas então o breu do espaço é o fundo de quê?

Rosália tinha apenas oito anos. Que raio de dúvidas para uma menina de oito anos. Seria muito mais adequado pensar nos berlindes que perdera no recreio da escola ou nos deveres de matemática por fazer. Mas aquela matemática de torneiras a pingar metros cúbicos de água ou de automóveis que vão de Lisboa ao Porto a 120 quilómetros hora e queremos saber a que horas irá jantar o condutor, não lhe interessava.

Interessantes eram os livros sobre OVNIS ou histórias de fantasmas. A avó garantia-lhe que os fantasmas existiam, já se tinha encontrado com alguns. O pai, por sua vez, tinha a certeza de que existiam extraterrestres - estava tudo oculto nos arquivos secretos americanos.

Chegou a sonhar com os ditos OVNIS. Encontros imediatos. O seu maior desejo era ser surpreendida, uma qualquer noite, enquanto admirava as estrelas, por uma forma circular com as cores do arco-íris a deslocar-se a grande velocidade …- era assim que imaginava as naves espaciais alienígenas. Era assim que já as tinha visto em sonhos.

Já os fantasmas, não os tinha em tão boa conta. Apenas pavor de se cruzar com algum quando entrava numa divisão escura da casa. Não lidava bem com esse potencial encontro e até o ar lhe faltava enquanto não encontrava o interruptor mais próximo.

O mundo era realmente um mistério. Afinal donde vinham e para onde iam as almas? Por mais que fechasse os olhos para admirar o Universo, ou que tentasse perceber para lá do breu espacial, nunca chegava a uma conclusão.

Hoje Rosália desistiu de fechar os olhos. Prefere mantê-los bem abertos, certa de que um dia encontrará resposta para todas as perguntas. Seja num disco voador ou num espectro esvoaçante.


quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Dias de Chuva

A chuva cai sem se importar com os transtornos urbanos. Dá brilho ao asfalto e limpa o pó das ruas, telhados, carros e esplanadas. 

Produz uma musicalidade que apenas os ouvidos mais atentos e sensíveis conseguem fruir.

Propaga cheiro a Outono pelo ar e traz memórias de outras geografias donde goteja do céu com mais frequência. Usufruir de um dia de chuva é um privilégio que tem de ser bem aproveitado.

A companhia de Michael Nyman enaltece sempre um dia de chuva. Uma espécie de overdose de my favorite things, acompanha dias assim em que a melancolia retira a importância a tudo o que acontece e envolve as horas num manto de sonho acordado.

Tantos dias de chuva de correrias desenfreadas a contrastar com outros de depurada calma. Se fechar os olhos vejo pessoas às cores de guarda-chuva no seu passo apressado pelas ruas da cidade. A correr para os trabalhos, para as escolas, para os supermercados, para encontros com amigos, com amantes, com transportes…ou então vejo estradas cheias de carros com os faróis a iluminar um rio a fluir. Um rio sem nascente e sem foz.

Vejo bares e restaurantes cheios de gente em alegre convívio e vejo aquele transeunte anónimo que caminha só e sem destino. Onde irá? Quantos dias de chuva já viveu? Quantos enfrentou assim, sem caminho a seguir os seus próprios passos? Será o primeiro? Há também dias de chuva assim. Ensurdecedores e vazios.

Hoje vou pelo sonho, entre a melodia do The Promisse e as gotas a cair lá fora. Hoje escolhi ser feliz num dia de chuva.

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Noites Brancas


Que busco na noite escura?
E nas manhãs sonolentas?
O sacrifício das horas que se amontoam
aos pés da cama…
Os dias vão assim sumindo.
Por trás da janela fechada,
longe do jardim solitário que por mim espera em vão.
Tudo ruge no silêncio.
A mota do vizinho e a procrastinação de mais um dia.